HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DE SURDOS

História da Educação de Surdos: da Antiguidade às Políticas Atuais — Guia Completo 2024

Você já se perguntou como a história da educação de surdos moldou as práticas pedagógicas e as políticas de inclusão que conhecemos hoje? Da condenação de Aristóteles ao bilinguismo contemporâneo, esta narrativa é marcada por conquistas, retrocessos e, sobretudo, resistência cultural. Neste artigo, você encontrará um panorama aprofundado, profissional e acessível, que percorre mais de dois milênios de trajetória em aproximadamente 2 300 palavras. Ao final, terá clareza sobre os principais marcos, personagens e legislações que pavimentaram o caminho para os direitos linguísticos da comunidade surda no Brasil e no mundo.

1. As raízes da exclusão: Antiguidade, Idade Média e Renascimento

1.1 Pensamentos filosóficos que moldaram preconceitos

Na Antiguidade, o discurso hegemônico ditava que a racionalidade estava intrinsecamente ligada à fala. Filósofos como Aristóteles argumentavam que, sem a oralidade, não haveria acesso ao pensamento abstrato. Esse ponto de vista consolidou a percepção de incapacidade intelectual das pessoas surdas, justificando sua marginalização em diversas culturas — Egito, Grécia, China e Roma são exemplos clássicos citados em registros históricos.

1.2 Idade Média: entre mitos e silenciamento

Com o avanço do cristianismo, a surdez passou a ser interpretada também sob lentes morais. Muitos acreditavam tratar-se de um “castigo divino”, o que reforçou a exclusão. Pouquíssimas iniciativas educacionais foram documentadas, à exceção de John Beverly, que, no século VIII, utilizou métodos empíricos para ensinar um jovem surdo a articular alguns sons. Ainda assim, tratava-se de ações isoladas, restritas a nobres, e sem continuidade.

1.3 Renascimento: o despertar do conceito de reabilitação

O Renascimento (1450 – 1600) foi crucial para redirecionar o olhar sobre a surdez. A valorização da ciência e da experiência empírica fez erguer a ideia de que a pessoa surda poderia, sim, aprender — bastava um método adequado. No entanto, a estratégia predominante continuou sendo a oralização forçada, pois acreditava-se que a fala era o passaporte para a cidadania. A semente de uma educação formal estava plantada, mas sem reconhecimento da língua de sinais.

Em destaque: Ainda hoje, várias barreiras atitudinais nascem desse legado histórico. Conhecer a origem do preconceito ajuda a combatê-lo.

2. Primeiros mestres e métodos: do século XVI ao Iluminismo

2.1 Pedro Ponce de León e a virada monástica

O monge espanhol Pedro Ponce de León (1520 – 1584) foi pioneiro ao alfabetizar jovens surdos de famílias nobres usando alfabeto manual e escrita. Seu trabalho, embora restrito a poucos, desmontou o mito da incapacidade intelectual. Inaugurou-se, nesse período, a ideia de que a surdez é uma diferença sensorial, não moral.

2.2 Charles-Michel de l’Épée: o “pai dos surdos”

No século XVIII, o abade francês Charles-Michel de l’Épée fundou a primeira escola pública para surdos em Paris. Ele sistematizou a língua de sinais francesa (LSF) em ambiente acadêmico, desafiando o paradigma oralista que ganhava força. A proposta de l’Épée espalhou-se pela Europa e influenciou diretamente Thomas Gallaudet, responsável por levar a metodologia às Américas, e Ládo Huet, que aportou no Brasil em 1855.

2.3 Disseminação global do modelo francês

Com a independência dos Estados Unidos, Thomas Gallaudet fundou, em 1817, a American School for the Deaf. William Stokoe, já em 1960, pesquisaria a ASL e provaria seu status linguístico, mas o ponto de virada foi a institucionalização, que deu visibilidade coletiva à comunidade surda. Na América Latina, o modelo francês também influenciou Argentina, Chile e México, mostrando a força de uma abordagem visual-gestual.

“Ao estudar a língua de sinais, entendi que cada gesto carrega a cultura de um povo. Não ensinamos apenas vocabulário: transmitimos identidade.”
Profª Drª Karin Strobel, referência em Estudos Surdos no Brasil.

3. O domínio do oralismo e o Congresso de Milão (1880)

3.1 Ascensão do método oral puro

No final do século XIX, a revolução industrial exigia força de trabalho padronizada. O discurso higienista favorecia a assimilação pela fala, considerada “normalizadora”. O Congresso de Milão (1880) selou a vitória do oralismo, banindo oficialmente as línguas de sinais em quase todo o Ocidente. Alexander Graham Bell, inventor do telefone e filho de uma mulher surda, foi um dos articuladores dessa decisão.

3.2 Impactos socioculturais e emocionais

Com a imposição do oralismo, crianças surdas foram impedidas de usar sua língua natural em sala de aula. Isso gerou apagamento cultural e altos índices de evasão escolar. Relatórios da época descrevem punições físicas a estudantes que sinalizassem. A estratégia produziu gerações de surdos sem fluência plena nem em língua oral nem na de sinais, comprometendo alfabetização e autoestima.

3.3 Contestação pós-guerra

A Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) expôs violações de direitos humanos que alimentaram o debate sobre minorias. Nos anos 1950 e 1960, movimentos de direitos civis abriram espaço para que pesquisadores como William Stokoe defendessem a legitimidade linguística das línguas de sinais. Aos poucos, o oralismo deixou de ser dogma incontestável, mas sua herança ainda persiste.

Dado histórico: Apenas em 2010 a Federação Mundial de Surdos (WFD) apresentou desculpas formais pelo Congresso de Milão.

4. Virada linguística: comunicação total, bilinguismo e pesquisa científica

4.1 Comunicação Total (1960-1970)

A filosofia da Comunicação Total pregava o uso simultâneo de sinais, fala e qualquer recurso visual que facilitasse o entendimento. Embora representasse avanço ao permitir sinais em sala, muitas vezes se convertia em “sinalização em apoio à fala”, reforçando a primazia do português. O conceito foi considerado um passo transitório rumo a um modelo efetivamente bilíngue.

4.2 Pesquisa acadêmica e legitimação linguística

Em 1960, William Stokoe demonstrou que a ASL possui fonologia, morfologia e sintaxe próprias. Esse achado repercutiu globalmente e influenciou pesquisadores brasileiros, como Gladis Perlin e Ronice Müller de Quadros, que consolidaram os estudos linguísticos em Libras. A comprovação científica derrubou argumentos que inferiorizavam as línguas de sinais.

4.3 Bilinguismo: identidade e cidadania

Nos anos 1980, a comunidade surda passou a reivindicar o bilinguismo: Libras como língua materna e o português escrito como segunda língua. Essa abordagem reconhece a surdez como diferença cultural, não patologia. No Brasil, a Fundação Nacional de Educação de Surdos (Feneis), criada em 1977, liderou mobilizações e contribuiu para aprovar a Lei 10.436/2002, que reconhece oficialmente a Libras.

Insight pedagógico: A proposta bilíngue prioriza a aquisição natural da Libras nos primeiros anos, repetindo o processo de qualquer criança ouvinte em língua oral.

5. A luta por direitos no Brasil: marcos legais e movimentos sociais

5.1 Lei 10.436/2002 e Decreto 5.626/2005

Em 24 de abril de 2002, a Libras foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão. Três anos depois, o Decreto 5.626 regulamentou a lei, obrigando universidades federais a oferecer disciplinas de Libras em cursos de licenciatura e fonoaudiologia, além de instituir a formação do tradutor-intérprete. Esse decreto ainda determinou o uso da Libras em serviços públicos, fortalecendo a acessibilidade.

5.2 Conquistas institucionais estratégicas

  • 2010 – Lei 12.319: regulamenta a profissão de tradutor e intérprete de Libras;
  • 2015 – Resolução CONTRAN 558: adapta a CNH para pessoas surdas;
  • 2019 – Lei 13.835: garante intérprete à gestante surda no pré-natal;
  • 2021 – Lei Estadual 23.773 (MG): diretrizes para escolas bilíngues.

5.3 Papel das universidades e da pesquisa

Com a criação dos bacharelados e licenciaturas em Letras Libras (UFSC – 2006; UFAM, UFPB e outras na década seguinte), houve explosão de estudos sobre didática bilíngue, variedades regionais da Libras e acessibilidade digital. Tais cursos também formaram gerações de profissionais surdos qualificados, que passaram a ocupar cargos de gestão e docência, ampliando o protagonismo da comunidade.

6. Filósofos educacionais: comparação de abordagens

PeríodoFilosofia PrincipalResultado para o Surdo
RenascimentoOralismo primitivoBaixa alfabetização; exclusão social
IluminismoAbordagem sinalizada de l’ÉpéePrimeiras escolas públicas; identidade emergente
Milão 1880Oralismo puroProibição das línguas de sinais; evasão escolar
1960-80Comunicação TotalAcesso parcial; falta de fluência em ambas as línguas
1990-hojeBilinguismoReconhecimento cultural e direitos linguísticos

6.1 Lições aprendidas

A tabela evidencia que a eficácia de cada filosofia está diretamente associada ao respeito pela língua natural da comunidade. Hoje, o bilinguismo tem dados empíricos favoráveis, com melhor desempenho acadêmico e autoestima dos estudantes surdos.

  1. Valorizar a língua de sinais desde o berço.
  2. Alfabetizar em língua majoritária por meio de metodologias visuais.
  3. Formar professores surdos para atuarem como modelos linguísticos.
  4. Garantir intérpretes qualificados em todas as etapas escolares.
  5. Investir em materiais didáticos bilíngues.
  6. Promover campanhas de conscientização social.
  7. Ampliar a pesquisa sobre bilinguismo e cognição visual.

7. Perguntas Frequentes sobre a Educação de Surdos

7.1 A língua de sinais é universal?

Não. Cada país (e até regiões) desenvolveu sua própria língua de sinais. A Libras é exclusiva do Brasil; a ASL, dos EUA e Canadá anglófono.

7.2 Crianças surdas podem aprender a falar?

Podem, mas o sucesso depende de múltiplos fatores: grau de perda auditiva, acesso a tecnologia assistiva e tempo de terapia fonoaudiológica. Mesmo assim, a língua de sinais oferece aquisição linguística plena desde cedo.

7.3 O que é escola bilíngue para surdos?

É aquela que tem Libras como primeira língua de instrução e português escrito como segunda língua, contando com professores surdos e ouvintes proficientes em Libras.

7.4 Qual a diferença entre intérprete e tradutor de Libras?

O intérprete trabalha de forma simultânea, muitas vezes em tempo real; o tradutor faz versões de textos escritos ou audiovisuais com tempo ampliado para revisão.

7.5 Implante coclear elimina a necessidade da Libras?

Não. O dispositivo amplia a percepção de som, mas não garante compreensão completa da fala. A Libras continua essencial para pleno desenvolvimento linguístico e identitário.

7.6 Como pais ouvintes podem apoiar filhos surdos?

Iniciando a aprendizagem de Libras junto com a criança, participando da comunidade surda e buscando informação em centros especializados.

7.7 Qual legislação ampara o direito à Libras nas universidades?

O Decreto 5.626/2005 determina a oferta de disciplinas de Libras e a presença de intérpretes em eventos acadêmicos.

7.8 O bilinguismo prejudica a aprendizagem do português?

Pelo contrário. Pesquisas indicam que competência sólida em Libras facilita a aquisição do português escrito, assim como uma boa base em L1 apoia o aprendizado de qualquer L2.

Conclusão

Em síntese, a história da educação de surdos percorre uma linha sinuosa, na qual:

  • Filosofias educacionais refletiram visões de mundo sobre a surdez.
  • O oralismo dominou após Milão, causando apagamento cultural.
  • Pesquisas linguísticas resgataram o valor das línguas de sinais.
  • O bilinguismo se consolidou como paradigma inclusivo.
  • No Brasil, marcos legais como a Lei 10.436 garantem direitos linguísticos.
  • Desafios persistem: formação de professores, materiais acessíveis e mudança de atitude social.

Para aprofundar seus estudos, assista ao vídeo do canal LibRaS em Prática incorporado neste artigo, visite as referências indicadas e participe de grupos locais de pesquisa ou da Feneis. Compartilhe este conteúdo para ampliar a conscientização e fortalecer o movimento surdo. Afinal, conhecer a história é o primeiro passo para construir um futuro verdadeiramente inclusivo.

Créditos: roteiro original do vídeo por Reginaldo Silva; linha do tempo organizada pela Profª Drª Karin Strobel. Artigo redigido com base nesses materiais e demais legislações brasileiras.

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